terça-feira, 11 de outubro de 2011

Mila e Catatau, a desigualdade no mundo cão (e noutros mundos)

Há dias, em Florianópolis, visitei no campus da UFSC, na Trindade, o túmulo do Catatau (1997-2009), cão símbolo e mascote, durante 12 anos, daquela universidade. Era um vira-lata, um pobre rafeiro, humilde guaipeca a que a sorte não afagou com uma casa rica, como a de Mila, a cadela setter do escritor Carlos Heitor Cony, hoje parte da literatura como o Fiel, de Guerra Junqueiro, o Gelert, do cardeal Augusto Álvaro da Silva, o Quincas Borba, homônimo do personagem de Machado de Assis, o Arghos, de Ulisses (da Odisséia, de Homero), a Baleia, de Graciliano Ramos, dentre tantos cães que a literatura registrou.

O Catatau não gozava do afeto exclusivo de um dono, como a Mila, nem merecia ração especial, visita de amigos de seu amo. Não. Catatau vivia da caridade pública, das migalhas do restaurante universitário. Não andava de carro nem visitava as famílias de acadêmicos, muito menos dos mestres da UFSC. A amizade acabava no pátio da universidade... Muito bom, muito interessante, sempre abanando a cauda cheia de carrapicho, mas que ficasse no seu mundinho de cão de rua, nada de imiscuir-se com a burguesia, de que recebia tímidos afagos e alguma proteção.

Catatau era um “perro calletero”, como diria Jorge Luis Borges. Mila, uma burguesa urbana, com direito a passeios com Cony pela Lagoa Rodrigo de Freitas. Catatau jamais passeou de barco na Lagoa da Conceição. Desconheço se Franklin Cascaes, que tudo sabia sobre a ilha, falecido em 83, conheceu Catatau. Salim Miguel, o maior escritor de Floripa, nunca escreveu sobre ele. Seu mundo eram os jardins e ruas, praças e saguões da UFSC.

Verdadeiro Manezinho da Ilha, vivenciou o mundinho da Trindade sem jamais sonhar com uma visita a Pântano do Sul, onde seria bem recebido no “Bar do Arante” com postas de peixe, sobras dos turistas. Nunca foi banhar-se no mar da Praia dos Ingleses nem no Saco dos Limões. Seu mondo cane era a Trindade.

Mila nunca fuçou numa lata de lixo, jamais roeu um osso infestado de moscas, jamais urinou em pose vulgar em público, nunca teve intercurso sexual se arrastando pelas ruas. Já Catatau passava horas agarrado ao osso, já sem tutano, que lhe atiravam no RU. Quando arranjava uma namorada mais liberal, enxotavam-no para que namorasse escondido.

A natureza lhe dera anticorpos para vencer as doenças, a podridão e o mofo, o mosquedo e a imundice das latas de lixo.

Catatau e Mila, um paupérrimo, outro afagado pelas benesses de um lar abastado.

Mila visitava a Academia Brasileira de Letras. Catatau, no máximo, ousava entrar na sala de aula e, em silêncio monástico, ali ficava por algum tempo. Chegou a sentar-se na cadeira do reitor para uma foto, ironia suprema, deboche dos acadêmicos em relação à direção. Jamais, por certo, visitou o magnífico reitor para um prato alentado de carne moída com polenta. Muito estimado, mas que ficasse no seu canto. Não tinha status para conviver mais de perto com a “inteligentzia” da universidade. Talvez um dia, por quota, ingressasse no convívio mais próximo do mundo acadêmico e ganhasse uma casinha bem pintada, uma pulguenta, pote d’água e tigela. Agora é tarde. É muito tarde. Catatau é morto.

Mila viera da casa de Adolpho Bloch, gozava de origem nobre. Catatau era filho ignoto, de cães vadios, de mãe que o concebeu sem nenhuma consciência. Algum fã do Zé Colméia lhe dera esse nome. Analfabeto, educou-se precariamente nos pátios da universidade, sempre de oitiva.

Politizou-se nos comícios, a que não faltava. Participou de greves, de protestos nos seus 12 anos de campus. Tinha inimigos gratuitos! Quem não os tem? Não escapei dessa indignidade humana. Tenho os meus. Alguns jamais tiveram meia hora, dez minutos de conversa comigo, mas me detestam e, por certo, até me caluniam. Com o Catatau não foi diferente. No derradeiro momento, algum deles o envenenou, assim “narra” seu biógrafo anônimo, transformado em voz corrente pela boataria, pela conversa de rua.

Catatau não mereceu um monumento de bronze à maneira do cão herói do Alasca, o Balto, no Central Park de Nova Iorque, sim modesto ao alto-relevo em cimento ou massa parecida. Ignoro se, em alguma parte do mundo, em algum campus universitário, há uma homenagem a um cão, como essa ao Catatau, companheiro de lutas dos acadêmicos da Universidade Federal de Santa Catarina, campus de Trindade, em Florianópolis.

Catatau chegou à universidade, mas não pôde gozar de seu status, viveu como favelado no campus, comeu mal, dormiu no cimento frio e na grama cheia de orvalho. Não passou de um vira-lata com proteção precária. Seu sonho de consumo era ser Mila na vida, merecer artigo na “Folha de São Paulo” e as lágrimas de um grande escritor.

Catatau lembra muito as diferenças entre os brasileiros... Uma minoria que tem quase tudo e uma maioria que vive como o Catatau, lúmpen do mundo canino. Catatau e Mila dariam excelente fábula sobre a imensa desigualdade social em que vive nosso povo.

Um dia, esperemos, o Brasil terá mais Milas que Catataus!

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