sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Maria de Bastiãozinho e o caboclo d’água de Lagoa Santa

Fiquei de 1961 a 1982 sem ver Maria de Bastiãozinho, cozinheira lá de casa, em Lagoa Santa (MG), durante cinco anos. Quando a revi, beirava os 90 anos. Toda Rua da Várzea a conhecia. Tornou-se exímia doceira, numa terra de quituteiras de mão cheia e de doceiras de raro paladar como Maria de Zé Galo, Loura da Várzea, Alice de Duarte, Célia de Zezé de Carola, todas célebres no meu tempo de menino. Minha mãe sabia muito sobre a culinária do Pará e do Amazonas, mas em matéria de culinária mineira deixava o comando para Maria de Bastiãozinho, mestra de forno e fogão a lenha, bem caipira, como o de nossa casa, antes ocupada pelo antigo capataz, na entrada da Fazenda do Pastinho, a uns 200 metros da beira da Lagoa Santa. Numa casa de nortistas, longe do pitiú de nossos peixes, gozava de plena liberdade para fazer pratos mineiros, como frango com tutu, angu e couve refogada, vaca atolada, cubu, frango com quiabo e quibebe (hoje sei que se tratava de um refogado de legumes em que entravam mamão, abóbora, umbigo de bananeira, a que se adicionava carne moída, quiabo e angu). Cedinho já estava pronto o café com rapadura. Vibrava no dia que ela fazia broas de milho ou quando fritava banana. Sempre fazia bolos e pudins. No quintal de casa havia nunca menos de 30 galinhas, ovos em abundância.

Na juventude, anos 30, Maria de Bastiãozinho, à maneira de tanta gente de Lagoa Santa, tirava junco de dentro da lagoa, de pouco mais de 6 km de perímetro, para fazer esteira e outras peças artesanais, assim como pescava. Hoje não existe mais junco nem se pode nadar. Em sua pequena canoa, não raro voltava às dez da noite. Lembro-me de seu Raimundo Litro, nosso vizinho, que conhecera Bastiãozinho ainda jovem, provocando-a para que contasse para minha mãe, pela enésima vez, como fora a história do caboclo d’água que lhe deu um susto tão grande que jamais ela voltou a pescar, à noite, na lagoa.

De repente, numa noite de luar, Maria de Bastiãozinho pescava a uns 500 metros do sangradouro da lagoa, quando viu uma mão peluda na borda da canoa. Com o susto, desmaiou. Levou bom tempo para recuperar-se, pegar o remo e remar até à margem, não muito longe de sua casa, na Rua da Várzea (chamada também de Rua de Baixo). Esse episódio ficou célebre e entrou no lendário de Lagoa Santa como dele fazem parte curiosos apelidos de algumas figuras que cheguei a conhecer como Zé Instruído (inspetor do ensino médio), irmão de Lourdes Bispo (telefonista), Luís Bomba, Maria de João Papagaio, Geraldo Precata, Geraldo Meio-Bolo, Abel Gago, Zé Ferro, marido de Camosina, irmã de Alice de Duarte e tantos outros.

Certa feita, alimentei o desejo de estudar a Guarda Moçambique, do bairro Santos Dumont, quando de minhas viagens a Lagoa Santa. Ficou no universo dos sonhos não realizados.

Seria, talvez, uma homenagem inconsciente à afro-brasileira Maria de Bastiãozinho, de quem tanto gostava, de quem recebi incontáveis agrados: doces e quitutes, além de carinho no trato. Já adulto, morando longe de Lagoa Santa, passei a ler sobre ela, seu povo, seus costumes. Quantas lembranças afloraram quando li o livro de Marlene Luzia Viana e Valderez Valle, “Memórias de Lagoa Santa’’. Agora mesmo acabei de ler “P.W. Lund e as grutas com ossos de Lagoa Santa”, dos dinamarqueses Birgitte Holten e Michael Sterll, editado pela UFMG.

Já alimentei o desejo, noutra época, de pesquisar sobre figuras como João Pichuleta, Zé Vital, Dona Isolina, Levi da Lapinha, Lerindo, gente ligada aos moçambiques e congadas de Lagoa Santa. Muito teriam para me contar.

Maria de Bastiãozinho muito me ensinou, reconheço agora, do seu universo afro-mineiro. Aprendi com ela a ter profunda simpatia pela raça negra, a conviver com nossos irmãos que vieram da África. E Minas Gerais tem na sua alma, no seu ethos e no seu pathos, nas suas irmandades religiosas, na sua comida, muito da África. O Brasil deve muitíssimo à raça negra. Com que emoção revi minha “mãe preta”, de quando eu era menino, Maria de Bastiãozinho. Com ela passava a metade do dia. Aprendi a amá-la com a pureza de minha meninice. Quantas vezes, quando partia, à tarde, para sua casa, queria ir junto com ela. No embornal que levava para a aula da mestra Anete Ferreira dos Reis, sempre havia doces feitos por ela. Meu preferido era o doce de laranja-da-terra, colhida em nosso quintal. Fui aluno encapetado, péssimo, ruim de nota, o derradeiro da turma. Vivia indo ou vindo de Belém do Pará. Suas sobrinhas e sobrinhas-netas, bisnetas e trinetas vivem em Lagoa Santa. Sua casinha na Rua da Várzea, singela, menos de 30 metros quadrados, duas portas e três janelas, é uma das imagens ainda presentes de minha infância. Quando revisitar Lagoa Santa, vou parar alguns momentos no singelo túmulo de Maria de Bastiãozinho para um preito de gratidão, de saudade e, quiçá, ali chorar. Sim, chorar a impossibilidade de revê-la, chorar a infância irremediavelmente perdida.

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